Divina de fátima dos Santos

Doutora em Psicologia Clínica

Família e Comunidade em foco: Entrevista com Divina dos Santos

Esta seção da Nova Perspectiva Sistêmica procura trazer para os leitores temas relevantes das áreas de saúde, educação e desenvolvimento social. Neste número, entrevistamos a psicóloga Divina de Fátima dos Santos, pedagoga, psicóloga, mestre em gerontologia e doutoranda em psicologia clínica na PUC-SP.

O trabalho desenvolvido por Divina foi premiado na II Mostra Estadual de Práticas Inovadoras em Psicologia, realizada em dezembro de 2011, pelo Conselho Regional de Psicologia e divulgado no jornal do CRP, edição 172.

O projeto “Encontro de Gerações”, desenvolvido em Caraguatatuba, utiliza a troca de correspondência entre crianças e idosos para desencadear um processo de mudança de atitudes e de construção de valores éticos.

A troca de correspondência, algo aparentemente simples, gerou envolvimento tanto das professoras das crianças, Eliana Aparecida Oliveira, Tânia Espírito Santo e Katia Aparecida Viana, que acompanharam os alunos na produção das cartas, como das famílias dos participantes. Embora não fosse o objetivo do projeto, o interesse em escrever cartas fez com que muitas crianças tomassem consciência de suas dificuldades com a escrita e evoluíssem bastante motivadas pelas tarefas do projeto.

O acompanhamento dos idosos foi feito por Divina em encontros semanais no Centro de Convivência da Melhor Idade – CREMI. Conversando com cada um deles sobre os significados da troca de correspondência, ela verificou como a concepção que tinham sobre as crianças mudava para alguns, enquanto, em outros casos, o ido-so, após o encerramento do projeto, manifestava a vontade de ajudar a criança com quem havia se correspondido em alguma situação de vulnerabilidade.

Da escolha da profissão à Gerontologia

Helena Maffei Cruz (NPS): Como foi o caminho para escolher a psicologia como profissão?

Divina dos Santos (DS): Antes de estudar psicologia, eu me graduei em pedagogia. Acredito que foi um processo natural, pois a interdisciplinaridade, de certa forma, sempre fez parte da minha vida: no meu caso, ambas as graduações se complementam e auxiliam na atuação profissional cuja caminhada sempre se manteve em duas frentes, tanto como educadora quanto como psicóloga, e em distintos locais e com pessoas de diferentes idades.

NPS: O que lhe causou mais interesse durante a graduação?

DS: Foram diversas coisas. Vale lembrar que muitas de minhas descobertas ocorreram na faculdade em ambos os cursos. Passei a maior parte da infância vivendo em um sítio localizado numa cidade pequena no interior do Estado de São Paulo, de modo que as pessoas que estavam à minha volta tinham pouca escolaridade. Tive, porém, a sorte de, em meu caminho, encontrar grandes professores verdadeiramente comprometidos com o ensinar, e me encantei com muita coisa que estudei e li durante a graduação, na qual também tive amigos entusiasmados e que muito me influenciaram ao longo da vida. Além disso, sempre fui bastante interessada por tudo que fiz e faço até hoje. A paixão me move. Algumas disciplinas que fizeram diferença em minha vida foram filosofia e sociologia, por ampliarem minha visão sobre o mundo e me ajudarem a compreender minha realidade.

E a antropologia, que me fez entrar em contato com minhas raízes e entender a miscigenação do povo de nosso país, valorizando-o e respeitando-o nas suas diferenças. Também as várias disciplinas da psicologia, do psicodrama e da psicopedagogia me tornaram mais humana e sensível. Aos poucos, fui amadurecendo e percebendo as diversidades, dificuldades e complexidades do nosso povo ao longo da minha formação, e depois fui percebendo que somos fruto da cultura, da história, do tempo e das oportunidades a nós oferecidas, entre tantas outras coisas. Assim, comecei a me interessar verdadeiramente pelas pessoas, suas alegrias, suas tristezas, suas maneiras de viver e se relacionar com o mundo.

NPS: Como foram seus caminhos profissionais?

DS: Tive a oportunidade de trabalhar com diferentes coisas ao longo da vida. Iniciei meu caminho profissional na área de Recursos Humanos em grandes empresas. Depois, aos poucos, fui direcionada para a área da educação e da psicologia.
Por um longo tempo, prestei atendimento à comunidade, como psicóloga e pesquisadora, nas clínicas-escolas da PUC, da USP e da SOPSP (Sociedade de Psicodrama de São Paulo), enquanto me aprimorava por meio de diferentes cursos de extensão. Desde minha formação em psicologia e em psicopedagogia, também venho trabalhando em consultório particular. Como professora e psicopedagoga, trabalhei com alfabetização no curso de EJA (Educação de Jovens e Adultos) durante muito tempo, com crianças que apresentavam dificuldade de leitura e de escrita nas escolas municipais em convênio com a PUC-SP. Esses trabalhos me fizeram crescer tanto como educadora quanto como psicóloga, no sentido de compreender melhor o ser humano com suas limitações, desejos, perseverança e em relação à superação de desafios nos inúmeros obstáculos existentes na vida de cada um, começando pela fome.

NPS: O que a levou à gerontologia?

DS: Passei boa parte da infância com minha avó e acredito que nossa convivência favoreceu minha admiração, fascínio e interesse em ouvir suas histórias de vida, não apenas as dela, como também a de todas as pessoas idosas que tive a oportunidade de conhecer. Lembre-se de que, quando eu era criança, não existia Internet nem Google. Naquela época, os velhos eram os únicos detentores do saber e eram valorizados por isso.
Tive a experiência de cuidar de meu pai, que sofreu da doença de Alzheimer, vindo a falecer aos 78 anos, período no qual pensei muito sobre a impotência e os limites do ser humano. Sofri e aprendi muito com sua doença e morte. De certa forma, essa experiência também despertou meu interesse em saber mais sobre o processo de envelhecimento, suas limitações e peculiaridade positivas. Penso que todos esses fatores de ordem pessoal, somados ao fato de eu ter trabalhado como professora de EJA na rede SESI–SP (Serviço Social da Indústria), me direcionaram para a Gerontologia.

Quando fui professora de alfabetização de jovens e adultos, a convivência em sala de aula com alunos de idades avançadas, mas cheios de esperanças e desejos por novas conquistas, possibilitou-me experimentar uma vivacidade que me surpreendia nas jornadas de trabalho. Na sala de aula na qual atuava como professora, ocorria, a cada noite, uma troca de energia que é difícil de explicar. Aquilo me fazia sentir renovada e estimulada a correr atrás dos meus sonhos, visto que alguns alunos idosos, até mesmo septuagenários, estavam ali, na minha frente, buscando um sonho que ficou adormecido no tempo, mas não esquecido: o de se alfabetizarem e de se tornarem leitores e poderem desvendar o mundo pelas letras.

Eu ficava curiosa em saber mais sobre aqueles alunos tão especiais e que, naqueles momentos, encontravam uma possibilidade de transformarem suas esperanças em realidade. Fui tomando consciência de minha responsabilidade, pois eles depositavam em mim a possibilidade de concretização de seus sonhos. Embora muito simples, humildes e iletrados, traziam em suas bagagens muitos ensinamentos, experiências de vida e desejos de continuar conquistando as coisas que o mundo contemporâneo oferece, bem como aquelas que não tiveram oportunidade de vivenciar e de aprender quando eram mais jovens. Por isso, digo que minha caminhada para a gerontologia foi bastante influenciada por essa experiência docente.

Origem do Projeto "Encontro de Gerações"

NPS: Como surgiu o projeto “Encontro de Gerações”?

DS: Em verdade, o projeto surgiu inicialmente como um trabalho pedagógico para a EJA: eu queria estimular meus alunos a escrever e melhorar suas narrativas, já que uma das funções de um alfabetizador é ensinar as regras correspondentes básicas e despertar nos alunos o interesse tanto pela leitura quanto pela escrita. Como sabemos, escrever cartas é um excelente recurso pedagógico muito utilizado em escolas. Em geral, meus alunos eram inseguros, tinham medo de escrever e eu precisava encontrar uma forma de estimulá-los e fazê-los superar seus temores, além de tornar o processo de escrita prazeroso para eles. Então convidei outras professoras na escola na qual trabalhava para fazer esse processo de troca de cartas com os alunos (no caso, crianças em processo de escolarização, que estivessem no mesmo nível de aprendizagem, para que, de fato, pudessem compreender e ajudar uns aos outros na aquisição e superação das dificuldades da escrita.

No início, os alunos adultos mais velhos ficaram desconfiados da proposta, e muitos se recusaram a participar do projeto. Eles não acreditavam que crianças tão pequenas fossem capazes de compreendê-los. Além disso, a autoestima deles era tão baixa que não acreditavam que suas histórias de vida pudessem ser interessantes para alguém, principalmente para uma criança. Para motivá-los a participar, exibimos na escola dois filmes importantes, seguidos de debates com os alunos:“Central do Brasil” e“Narradores de Javé”. Após esse trabalho de sensibilização, o medo de não serem aceitos por seus correspondentes foi superado aos poucos. As crianças já tiveram reação diferente e se encantaram com a ideia de poder escrever para estudantes mais velhos. Assim iniciamos o projeto que, pouco a pouco ganhou força e transformou-se em grande sucesso. A princípio, as cartas eram tímidas, com poucas palavras, mas à medida que o tempo foi passando e novas cartas foram trocadas, eles começaram a se soltar. Quando vi a emoção deles no momento de receber, ler e responder as cartas recebidas, notei que essa proposta de trabalho continha muito mais que um simples projeto pedagógico de melhora da escrita. Estava havendo uma grande “transformação” e muito aprendizado para todos os envolvidos. Os dados e resultados desse trabalho estão na minha dissertação, defendida e aprovada na PUC-SP em 2010, intitulada:“Relações intergeracionais: palavras que estimulam.

Atualmente resido em Ubatuba onde, para dar continuidade aos meus estudos de doutoramento, procurei alguns gestores na área de educação e no CREMI (Centro de Referência da Melhor Idade) de Caraguatatuba-SP. Propus o projeto “Encontro de Gerações” às citadas instituições, explicando que este envolvia uma pesquisa de pós–graduação, mas também apresentava alguns benefícios inerentes às suas finalidades. Tive sorte, fui muito bem acolhida e os responsáveis me deram todo apoio. Também encontrei algumas professoras interessadas em participar. Daí iniciamos um trabalho piloto em 2010 para avaliar a reação dos participantes, e, como tudo correu bem, o “Projeto Encontro de Gerações” continua ativo até hoje. Participam dele os idosos do CREMI e as crianças dos 4º e 5º anos do ensino fundamental do município.

Esse é um trabalho que envolve muita gente, por isso é preciso ter muito cuida-do. Afinal, lidamos com os sentimentos e as emoções dos participantes, que, muitas vezes, colocam todo um sonho naquele papel e na pessoa com quem se está intera-gindo. Além disso, há uma logística que precisa ser muito bem planejada, pois, além das crianças e dos idosos, este trabalho reflete diretamente em toda a comunidade escolar e em seus familiares. As professoras trabalham com as crianças, a mim cabe a responsabilidade de trabalhar com os idosos.

Cabe destacar, que sem o apoio das autoridades locais, dos gestores das escolas, das professoras e dos pais dos participantes no projeto e dos funcionários das instituições envolvidas, esse trabalho seria impossível. Eu, que coordeno toda essa logística, sou muito grata a todos que confiam em mim e apoiam essa iniciativa, cujo inestimável suporte tem sido importante para o sucesso de nosso projeto.

NPS: Quem foram seus parceiros teóricos nessa caminhada?

DS: Devo acrescentar que tive uma grande mestra na minha vida, minha avó Roberta, como já disse, grande companheira e responsável por muito do que sou hoje, que, já analisando alguns aspectos da minha formação profissional, me ensinou muitas coisas que não se encontram em livros. Também tive inúmeros e preciosos companheiros teóricos, autores que revolucionaram minha forma de pensar, para citar apenas alguns: Darcy Ribeiro, Paulo Freire, Pablo Neruda, José Saramago, Jacob Levy Moreno, Carl Gustav Jung, Sigmund Freud, Edgar Morin, Rosa Cukie, Sergio Perazzo, Ivani Fazenda. Claro que nunca poderia me esquecer do apoio que meu marido, também professor, vem prestando ao meu trabalho.

NPS: Quais pressupostos estão presentes na sua prática?

DS: A longevidade é um fato concreto em nosso país, então precisamos aprender a envelhecer. O projeto em pauta permite essa reflexão. De modo geral, infelizmente, a sociedade despreza o velho e tudo que ele representa. Mas é preciso encarar a velhice sob outro prisma, pois todos envelheceremos e, se desejamos ser respeitados na velhice, devemos aprender a respeitar os velhos de hoje, um preceito elementar da boa educação. No processo de troca de cartas, as crianças têm a possibilidade de aprender com uma pessoa idosa e, em geral, diferente do seu meio familiar; com isso, ela termina por tender a ser mais respeitosa com os idosos. Já os idosos têm a possibilidade de passar seus conhecimentos de mundo e suas experiências de vida a alguém interessado em suas histórias, melhorando, com isso, sua autoestima e sua qualidade de vida. Outro dado concreto é que as crianças podem estar solitárias e os idosos geralmente estão, e a possibilidade de trocar cartas elimina o sentimento de solidão de certa forma. E, para as crianças, esta superação da solidão, bem como a interação com alguém com uma experiência acumulada, pode se refletir na superação de um possível fracasso escolar.

NPS: O que mais você gostaria de contar para a nossa revista?

DS: Pessoalmente, eu acredito no ser humano e na vida, penso que vale a pena lutar por um mundo melhor, mais respeitoso e mais justo. O projeto “Encontro de Gerações”, realizado por meio de cartas, me fez ver que a idade não importa, sempre temos muito a ensinar e a aprender e necessitamos estar abertos para ver e compreender os outros, independentemente de sua faixa etária. Este trabalho pode ser reaplicado e multiplicado em diferentes escolas, sempre com respeito e seriedade, a fim de serem atingidos seus sadios objetivos.

Psicóloga Divina

Doutora em Psicologia Clínica

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